Artigo | Por que religiões tradicionais de matriz africana são agroecológicas
Escrito por Eduardo de Oxalá em 16/12/2021
Do processo de iniciação aos rituais cotidianos, os adeptos exercitam a reclusão social e o contato com a natureza
Makota Celinha Gonçalves
Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 31 de Março de 2020 às 18:04
Quando vamos nos iniciar em alguma das religiões tradicionais de matriz africana, somos, na verdade, chamadas/os a um encontro com nós mesmos, entramos em um processo de reclusão social. Por isso, isolar-se hoje para evitar a contaminação pelo coronavírus não nos é tão difícil — ou não deveria sê-lo —, uma vez que trazemos conosco parte do aprendizado de nossas iniciações.
Nesse processo, aprendemos a nos conhecer, a nos entender. Dedicamos grande parte desse processo ao nosso encontro com nosso sagrado e é um sagrado efetivamente ecológico. Vejamos:
Para entrar no processo de iniciação, precisamos nos harmonizar. Essa harmonização é feita por meio de um ebó chamado de limpeza, em que passamos por um processo purificação profunda de nossos corpos e aura espiritual.
O material desse ebó são verduras, frutas, legumes e grãos. Tudo fornecido pela natureza. Tudo cru e vivo, pois nós acreditamos na natureza viva.
Nesta altura do campeonato, já sabemos quais são nossas energias (orixás, nkise e vodun), já conhecemos seus elementos naturais. Pois eles são a representação de fenômenos, aspectos físicos e animais da natureza. Têm suas representações nas folhas, nas frutas e nos animais.
Para se iniciar, é preciso saber qual é a folha que irá forrar nossa cama. Essas folhas passam a nos acompanhar, fazendo parte de nossos banhos, nossos chás, nossos fundamentos.
Nossos Orixás, Nkises e Voduns não são representados por imagens ou estátuas, mas por Otas vivos e pulsantes, elementos de uma natureza pujante. Nossas contas são banhadas em ervas sagradas que lhes garantem o encantamento que nos acompanharam por toda a vida.
Nossos Orixás, Nkises e Voduns se alimentam do que a natureza produz, do animal à comida seca. Por isso, sacralizamos animais para as dinvidades, que se alimentam e assim nos fortalecem em nossa subjetividade e vida cotidiana. Também lhes servimos alimentos, como arroz, feijão, milho, frutas etc. E o ideal é que esses alimentos sejam os mais naturais possíveis. Após servi-los, nós também nos alimentamos dessa mesma comida em verdadeiros banquetes públicos, em que também se alimentam nossos convidados. Por isso, reafirmo quão agroecológica é minha religião.
Nada somos sem a natureza, nossas energias nos falam através da beleza das folhas, das árvores, das flores, frutos, rios, cachoeiras e mares.
Quando vamos pegar uma folha, agradecemos ao dono delas, rogando a ele que as mantenha sempre vivas, pois, sem elas, nada somos. Assim também falamos com os rios, as cachoeiras e os mares. Quando se desmata a floresta, quando se mata uma árvore ou quando se polui um rio, uma cachoeira ou o mar, mata-se um pouco o Orixá, o Nkise e o Vodum. Pois ali se faz a morada de nossa energia primordial.
Quando o capitalismo investe na destruição da natureza, está investindo no fim de minha subjetividade, pois minha religião é baseada na cultura, na tradição e na preservação da natureza, como fonte de vida e de energia.
Da folha e da água, extraímos uma louvação e uma bênção.
*Makota Celinha Gonçalves é jornalista, empreendedora social da Rede Ashoka e coordenadora nacional do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab).
Edição: Vivian Fernandes