O estado de São Paulo reconheceu um terreiro como patrimônio histórico pela primeira vez em 1990 —depois, levou quase três décadas para que outros desses espaços também fossem tombados pelo governo. O reconhecimento foi tardio, já que há pelo menos um século há sinais da presença de religiões afro-brasileiras na região.
A demora não é mero acaso e vem acompanhada de um longo histórico de repressão e violência. Manifestações religiosas como o candomblé e a umbanda já foram tidas como ilegais no Brasil e o próprio Estado era responsável por revistar e apreender objetos de locais considerados sagrados pelos praticantes dessas religiões. Por isso, os terreiros tiveram que abrandar seus ritos e afastá-los de suas origens por muito tempo.
O reconhecimento dos espaços como bens culturais —além da religião, eles abarcam festas, danças, musicalidades, jogos e culinária— só foi alcançado a partir de reivindicações do movimento negro. No estado de São Paulo, a preocupação com a conservação e proteção dos espaços religiosos de matriz africana virou assunto na década de 1990, com o tombamento do terreiro de candomblé Axé Ilê Obá, fundado em 1950 na zona sul da capital paulista.
Foi um longo processo capitaneado por Mãe Sylvia de Oxalá com a ajuda de outras lideranças do candomblé, políticos e estudiosos que se debruçaram na história do terreiro para provar a importância das religiões de origem negra na construção da identidade brasileira para o Condephaat —órgão da secretaria de Cultura que regula o patrimônio.
Uma das pessoas à frente do processo à época, o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva foi procurado anos depois pelo Terreiro Santa Bárbara, que estava prestes a ter parte de seu espaço demolido para a construção de uma rodovia. Logo, outros quatro pedidos se juntaram à lista e foram reunidos pelo grupo de trabalho Territórios Tradicionais de Matriz Africana Tombados de SP. A missão era juntar as solicitações para que elas ganhassem força. Vinte e nove anos depois, mais terreiros foram reconhecidos.
“Muitos terreiros demandam esse tombamento como uma forma de garantir sua sobrevivência —seja por uma disputa familiar, uma ameaça do Estado, ou até uma que venha dos processos de intolerância religiosa”, diz o antropólogo. “Tombar um terreiro é uma forma de forçar o Estado a reconhecer as heranças culturais africanas como parte legítima do processo de formação da sociedade brasileira. Faz com que essas comunidades sejam vistas como produtoras de um saber que não se limita à esfera religiosa”, explica. Para Silva, é o reconhecimento de que um terreiro não é apenas um lugar, mas um território.
Do lado das lideranças, adicionar a camada do patrimônio à legitimação garante mais segurança às religiões, ameaçadas desde suas origens —ainda que a intolerância não reconheça marcos como este. “É extremamente importante para a preservação da nossa cultura, da nossa religião, do nosso axé, daquilo que nós temos como religião”, diz Mãe Carmen de Oxum, ialorixá do Ilê Obá Omi Axé Opô Aracá, casa de São Bernardo do Campo tombada na leva de 2019.
Para Sidnei Nogueira, babalorixá e autor do livro “Intolerância Religiosa”, publicado pela editora Jandaíra em 2020, os tombamentos vêm para validar o que desde sempre foi cristalino para a comunidade que o frequenta. “É um espaço revolucionário de resistência negra e um espaço de memória. Fala sobre a capacidade de manutenção de um código sofisticado, reelaborado no Brasil por pretos e pretas escravizados. É a ressignificação de uma África ancestral”, diz.
A inclusão de terreiros na lista de espaços tombados culturalmente, segundo seus líderes, ainda amplia na sociedade a ideia de que esses territórios extrapolam crenças religiosas —o que impacta diretamente na luta antirracista.
Da mesma forma que uma pessoa não católica visita uma igreja para observar sua arquitetura e o retrato que ela faz de um tempo, os terreiros também são valiosos contadores de histórias. “Não precisa se converter, porque nossa cultura não é de proselitismo”, diz Pai Sidnei. “Se você quer lutar por nós, o primeiro passo é nos conhecer. Lutar por nós só no discurso não resolve nada.”
Axé Ilê Obá
O primeiro terreiro tombado de São Paulo fica no bairro do Jabaquara, na zona sul da capital paulista. Sob o comando de Mãe Paula de Yansã, faz giras às quartas-feiras, atendimentos particulares com jogos de búzios e festas —a próxima dela é a das Yabás, orixás femininas, e está marcada para o dia 3 de dezembro, sábado. Também organiza visitas para grupos que querem saber mais sobre a história do terreiro e do candomblé paulista.
R. Azor Silva, 77, Jabaquara, tel.: (11) 5588-2437 e (11) 5588-0017. Festa das Yabás: 3/12, sábado, às 16h. Instagram @axeileoba e site
Ilê Afro-brasileiro Odé Loreci
O terreiro de candomblé localizado em Embu das Artes tem 10 mil m² quadrados e foi tombado em 2019. Além do espaço religioso, como o barracão e o Pátio dos Orixás, há um centro cultural com biblioteca e museu que conta a história da África, dos escravizados e do próprio candomblé. As atividades ultrapassam a religiosidade —também oferece oficinas de contação de histórias e de comida africana. As visitas ao museu são feitas a partir de agendamentos. O espaço ainda fica aberto em dias de festivais, como o dedicado a Oxalá e a Iemanjá, no dia 3 de dezembro.
R. Monte Alegre, 126, Jd. dos Pinheiros, Embu das Artes, tel.: (11)4704-4621. Festival de Oxalá e Iemanjá: 3/12, sábado, às 19h. Instagram @ileodeloreci
Ilé Alaketu Asé Airá – Templo Culto Sagrado Tatá Pércio do Battistini
O terreiro de culto de nação Ketu, a mais popular do candomblé, foi fundado na década de 1960 na zona norte da capital paulista, mas depois migrou para São Bernardo do Campos. Criação de Tatá Pérsio de Xangô, iniciado na religião pela Mãe Menininha do Gantois, foi reconhecido como patrimônio de São Paulo em 2019. Atualmente sob o comando da Mãe Luizinha de Nanã, a casa avisa no perfil no Facebook os dias de giras e festas. Fecha para atendimento particular com horário marcado às quartas-feiras.
R. Antônio Batistini, 226, São Bernardo do Campo, tel. (11) 99950-7535. facebook.com/asebatistinioficial
Ilê Olá Omi Asé Opô Àráká
O terreiro de candomblé, que tem como ialorixá Carmem de Oxum e, como babalorixá, Karlito D’Oxumaré, tem 50 anos de tradição e é patrimônio do estado de São Paulo desde 2019. Antes, em 2017, já havia sido tombado pelo órgão municipal de São Bernardo do Campo. O acervo religioso fica disponível para os visitantes conhecerem o que é o sagrado e as tradições de matriz africana no barracão, também chamado de salão. Há também uma biblioteca com livros feitos no próprio espaço, que trazem estudos sobre plantas tradicionais utilizadas nos cultos. O próximo evento aberto ao público será a festa de Oxum Yeponda e das Yabás, as orixás femininas, neste sábado dia 19.
Al. dos Pinheirais, 270, São Bernardo do Campo, Jd. Porto Novo. Festa Oxum Yeponda e Yabás: Sáb. (19), às 22h. Instagram @ileolaoficial
Santuário Nacional da Umbanda
O Vale dos Orixás fica na reserva ecológica da Serra do Mar e foi tombado como patrimônio cultural imaterial em 2019. São 645 mil m² de mata nativa —recuperadas desde que o local, que antes era uma pedreira, foi assumido pelo babalaô Ronaldo Linares na década de 1960. Desde então, é usado como espaço contemplativo e também de oferendas. É possível deixar presentes para os orixás em pontos como a casa dos Pretos Velhos, a pedreira de Xangô e o lago de Nanã, desde que sejam seguidas as regras de preservação ambiental. Também dá para se banhar, de roupa, na cachoeira de Iansã. O local tem lanchonete, além de uma florista e lojinha, caso o visitante queira comprar as oferendas por lá mesmo.
Estrada do Montanhão, 700, Montanhão, Santo André. Instagram @santuarionacionaldaumbanda e site
Terreiro Santa Bárbara
O terreiro fundado por Mãe Manaundê, a Julita Lima da Silva, foi o primeiro de candomblé a ser reconhecido em cartório —sob o nome Tenda Espírita Oiá Dilê— em 1962. Foi tombado em 2018. Lá, são feitas ações sociais para a comunidade, como a distribuição de cestas básicas.
R. Ruiva, 90, Brasilândia, região norte. Mais informações e agenda no Instagram @terreirosanta
O que saber para a visita
O terreiro é um espaço sagrado e, como em qualquer igreja ou templo, as vestimentas importam. Use roupas brancas ou de cores claras e que cubram o corpo; regatas, bermudas ou minissaias, por exemplo, não são boas opções
Não vá ao terreiro se estiver sob o efeito de álcool e outras substâncias
Respeite o ritual e se mantenha em silêncio, nos lugares designados para o público. Não use o celular e deixe o aparelho e em modo silencioso
Além do calendário de festas públicas e de giras abertas, uma boa opção para conhecer a casa é marcar uma consulta privada, com jogo de búzios, por exemplo
Lembre-se de verificar a programação do local e checar se o evento é aberto